A floresta e a arte estão, hoje, de luto
Krajcberg nasceu em 1921. Ouvi Krajcberg dizer que ele seria o último sobrevivente com este sobrenome no mundo. Possivelmente, sim. Sua família foi dizimada na Segunda Guerra Mundial, durante o massacre nazista. Ele decidiu não ter filhos. Deixará como legado milhares de troncos calcinados, pintados em urucum vermelho, contorcidos pela assimetria ou pelo acaso que marcam a natureza (e transformados, por sua mão faber, em obras de arte). Deixará também moldagens em relevos e fotografias de galhos, flores e queimadas – espécie de acervo bruto de onde nasce sua obra escultórica.
Krajcberg é um arauto da defesa do verde, desde quando o assunto não era moda, desde quando não era tão clara – e angustiante – a realidade de uma natureza trucidada pelo homem. Essa percepção sobre a obra do artista teve o Musée de l’Homme, em Paris, que criou, há menos de um ano, uma nova exposição permanente sobre a história da civilização. Sabe qual o único artista que, com dez esculturas, marca esta caminhada do homem sobre a superfície terrestre? Krajcberg, ele mesmo.
Em suas esculturas com flores-fósseis avermelhadas, se percebe, para além do belo, a memória ressurgida do sofrimento. Também se percebe a dor nos relevos, de acordo com o crítico Frederico Morais, para quem o mundo do artista, “baseado numa espécie de memória da natureza” surgiu, também, como forma de “anular uma memória do seu próprio passado”..
O filólogo e crítico de arte Antonio Houaiss escreveu que o amor de Krajcberg pela natureza se externava de três formas: “Sofridamente, porque nele há denúncias dos ultrajes que cotidiana e sistematicamente estamos praticando contra a vida. Emotivamente, porque nele há a apreensão da beleza que se encerra na coerência e harmonia naturais. E apaixonadamente, porque cada um de nós, vendo as coisas de Krajcberg, passa a conviver com Krajcberg, a compreendê-lo e a engajar-se na direção do seu engajamento como paixão de vida.”
Nascido na Polônia, Krajcberg chegou ao Brasil, em 1948, aos 27 anos. Em 1972, deixou a vida urbana para enraizar-se em meio ao mato de Nova Viçosa, no sul da Bahia. Desde então, a natureza lhe foi companheira e também matéria prima. O tronco gigante de um pequizeiro virou sua casa suspensa, onde ele dormia, acordava, sonhava e se enfurecia. As raízes do mangue — ocultas ou visíveis, úmidas ou secas — viraram quadros e esculturas (que nada têm de ready-made, porque minuciosamente talhadas, coladas, pintadas e trabalhadas pelo artista). Há peças suas, emolduradas em madeira, onde a “pintura” é feita apenas com pedras. De tudo ele se apropriou nesta passagem de quase um século pela superfície e pelas entranhas da Terra.
Esta magia da abstração se dá quando os objetos que nos cercam rebrilham pelo acaso de nosso olhar. É o acaso que nos faz identificar o ser que amamos entre milhares. É o acaso que faz o artista verdadeiro perceber, na miríade de formas da floresta, aquele recorte para o qual dará um novo sentido. Catador de mundos, ao que a natureza criou Krajcberg resolveu dar o contorno de seu imaginário. Raízes, lianas, troncos retorcidos vão se entretecendo. Passam a dispor de uma dupla vida: aquele na qual nasceram e morreram e aquela, recriada pelo artista, onde ganharam algum desejo de eternidade.
O que se produz é um amálgama entre o ser e as coisas, entre Krajcberg e seus troncos, como se não houvesse distinção física entre ambos. Foi a vontade de viver que levou Krajcberg a abandonar a Europa do pós-guerra em busca de um caminho próprio de expressão. “A natureza é minha cultura. É ela que me dá o desejo de viver. Muitas vezes o diálogo é mais rico com a natureza do que com os homens. Um pedaço de pau no meio do mato chega a me dizer mais que algumas pessoas.”
Leonel Kaz é co-editor do livro de artista “Outra Natureza”, de Krajcberg
[texto publicado no jornal O Globo, Segundo Caderno. Rio de Janeiro, 16.11.2017]