A revelação do avesso de Ferreira Gullar
Você já acordou com o seu avesso revelado? Pois é; eu acordei. E continuo acordando há décadas, me revendo pelo avesso. A primeira vez foi, talvez, quando ouvi o poeta e crítico Gullar dizer que “nós somos o imaginário daquilo que imaginamos que somos”. Ouvi. Depois li e reli. Dormi e acordei, me vendo em mim mesmo como se minha pele de dentro estivesse exposta. Foi a primeira revelação do avesso.
O acaso faz surgir o avesso, o de dentro ou o de fora. Entre ambos, a fronteira da pele. O que temos fora foi designado por nós: nomes de gente, árvores, bichos (inclusive… gatos). Nomes de sentimentos. Nomes do alvorecer ou do poente. Somos, portanto, uma invenção de nós mesmos. Se somos capazes de nos inventar, somos capazes de tecer imaginários sobre conjuntos de coisas profissionais, amorosas, coletivas.
É o que faz Gullar dentro do princípio de que a vida não basta; daí, a arte. Certa feita, ele escreveu sobre um artesão e sua casa real (em São Pedro da Aldeia, RJ) feita de conchas e cacos de cerâmica: “Uma casa de sonho para que o seu sonhador pudesse morar no sonho. Como um pintor que lograsse habitar o seu próprio quadro ou o poeta, o seu próprio poema.” Pois é, com este conjunto da obra Gullar habita o sonho, a arte e o poema ao mesmo tempo.
Passo a palavra a Gullar:
“Estas colagens em relevo, que aqui são mostradas pela primeira vez, nasceram por acaso. Na verdade, há muito tempo venho fazendo colagens. Inicialmente, desenhava garrafas, bules e cálices, recortava papéis coloridos e colava em cima.
Um dia, porém, já havia posto os recortes sobre o desenho para em seguida colá-los, quando meu gato deu um tapa na folha de papel e desarrumou os recortes. Colei-os tal como estavam: disso resultou que o desenho era a ordem e os recortes coloridos, a desordem.
Depois, não mais desenhava: jogava os recortes de papel e, conforme caíssem, os colava. Assim nasceram aves, dragões, cobras e lagartos, com os quais compus livros para crianças (e para adultos também). E foi então que surgiram as colagens em relevo.
Estava recortando um papel de cor verde, quando de repente o avesso desse papel, que era de outra cor, se mostrou: colei o recorte assim mesmo, isto é, a forma verde que recortara e mostrando o avesso de cor cinza, que se revelara inesperadamente. E assim nasceram as colagens em relevo, que passei a fazer em formato maior.
Alguns amigos ao virem a minha casa e depararem com as tais colagens, tomaram-se de entusiasmo, o que me estimulou a continuar fazendo-as, já que me convenceram a mostrá-las numa exposição. A ideia da exposição, rejeitei-a de início. Mas eles me convenceram, alegando que não importava se eu sou ou não artista plástico; importava é que as colagens em relevo eram bonitas e originais.
Tomei-me de entusiasmo e continuei a produzir estas colagens em relevo, que me divertem muito. Se são arte ou não, pouco importa, já que não me pretendo artista mesmo.”
Leonel Kaz [texto publicado no site da revista Veja, Rio de Janeiro, 2014]